
Na eleição presidencial de 1960, entre o Vice-Presidente Nixon e o Senador John Kennedy, uma das investidas políticas mais freqüentes contra Kennedy era que, sendo católico, ele se submeteria às vontades do Vaticano, um rompimento grave da separação entre o Estado e a Igreja, e uma violação constitucional. Kennedy se viu compelido a abordar diretamente a questão, e proferiu um famoso discurso, em Houston, Texas, em setembro daquele ano. Claro, direto, objetivo, não deixou espaço à ambigüidade. “Acredito em uma América onde a separação entre a Igreja e o Estado é absoluta; onde nenhum prelado católico diria ao Presidente como agir, e nenhum ministro protestante diria a seus paroquianos em quem votar; onde nenhuma igreja ou escola religiosa receberia fundos públicos ou preferência política. Acredito em uma América que, oficialmente, não é católica, protestante ou judaica, onde nenhum servidor público solicita ou aceita instruções do Papa, do Conselho Nacional das Igrejas, ou de qualquer fonte eclesiástica; uma América onde nenhuma entidade religiosa tenta impor, direta ou indiretamente, seus desígnios sobre a população geral ou às ações públicas de seus dirigentes.” De fato, nos três anos em que foi Presidente, John Kennedy jamais confundiu suas funções administrativas com suas convicções religiosas. Hoje, a América secular preconizada por George Washington e Thomas Jefferson—e reiterada pelo Presidente Kennedy—está irreconhecível. A jornada para a vida eterna inicia-se nas calçadas históricas de Roma, em peregrinações de fé mostradas na televisão; o desvio em direção ao poder percorre auto-estradas do Texas, em operações sigilosas, onde a mensagem de Cristo é reduzida a veículo eleitoral, e a salvação da alma é uma questão de filiação partidária. Depois de receber uma descompostura pública do Papa João Paulo II., por causa da guerra do Iraque, o Presidente Bush, por iniciativa de seu conselheiro político, Karl Rove, aproximou-se da Santa Sé para lembrar que, apesar da guerra, Bush estava na linha de frente do combate à eutanásia, ao aborto, e, a uma tendência cultural que tem acumulado vapor nos Estados Unidos e no Canadá recentemente, o casamento gay. Àquela altura as pesquisas de opinião revelavam um empate entre Bush e Kerry. Se reeleito, Rove ponderou, o Presidente da única super potência do planeta, George W. Bush, seria um poderoso aliado do Vaticano na luta pela preservação dos rigores mais tradicionais da igreja. Quem sabe poderia ajudá-la a resgatar o vigor antigo, severamente corroído pela turbulência dos anos sessenta, protestos estudantis, o movimento hippie, a integração da mulher no mercado de trabalho. O então Cardeal Joseph Ratzinger comprou o argumento de Karl Rove. Assim é que pouco tempo depois, recomendava aos bispos americanos que recusassem comunhão a políticos católicos que não se posicionassem incisivamente contra o aborto, um ataque direto ao candidato presidencial John Kerry. Kerry endossava o pragmatismo do ex-presidente Bill Clinton, de que o aborto deveria ser legal, seguro, e acima de tudo, criterioso e raro. E o número de abortos declinou nos oito anos da administração Clinton, sem que a mulher que venha a submeter-se a eles, e o profissional da medicina que os pratica, fossem convertidos em facínoras. A alternativa é conhecida: para mulheres de classe média baixa, clínicas secretas de assepsia duvidosa; as abonadas recorrem ao ginecologista particular, caríssimo, que utiliza cuidados extremados. Durante as últimas semanas da campanha presidencial de 2004, uma carta pastoral foi lida nos púlpitos das igrejas católicas dos Estados Unidos, afirmando que votar no candidato democrata equivalia a “fazer um consórcio com forças satânicas.” A margem de apoio dos católicos ao Presidente Bush aumentou de 46 por cento, no ano 2000, para 52 por cento, em 2004. Um ganho percentual que desatou o empate a favor do Presidente Bush, e garantiu-lhe o segundo mandato. A eleição do Cardeal Ratzinger ao trono de São Pedro, meses depois do triunfo eleitoral do Presidente Bush em novembro do ano passado, consolidou a aliança da Santa Sé com a Casa Branca, e o envolvimento direto da religião na presidência estadunidense. É como nos tempos da Europa pré-moderna, quando poderes eclesiásticos exerciam influência no establishment político dos impérios e das monarquias vigentes. Sabe-se que Ratzinger abomina o iluminismo, que ele chama, com menosprezo, de “relativismo moral” —e compara ao nazismo—e considera a Revolução Francesa de 1789, um erro da História. Os dois líderes compartilham uma visão medieval do mundo, e o desejo de retroceder aos tempos felizes em que se cassavam bruxas nos telhados, atiravam-se os culpados de heresia na fogueira da inquisição, e o cristianismo era levado aos outros povos na ponta da espada. Não é por acaso que o Cardeal Ratzinger ocupava a direção da famigerada Congregação para a Doutrina da Fé, a Santa Inquisição reinventada. Ultraconservador, refratário a dissidência e ao debate, adepto da fé cega e da observância rígida aos costumes tradicionais da igreja romana, o novo Papa considera a crescente secularização do ocidente o maior perigo para o cristianismo. A primeira coisa que me veio à lembrança foi o nome do Frei Leonardo Boff, censurado pela Santa Sé por se meter em movimentos operários durante a ditadura militar no Brasil nos anos oitenta. Leonardo Boff e Frei Beto seriam, por assim dizer, protótipos do mau católico. A América Latina católica—o Brasil, a maior população católica do mundo— recebeu um cala-boca do clube de cardeais que selecionam o Papa. No entender do Cardeal Ratzinger, ou Bento XVI, a teologia da libertação era o marxismo de batina, parecer adotado pelo Papa João Paulo II, de quem era o braço direito. Para ele rock é um veículo da antireligião; o feminismo uma ameaça à família; homossexualismo uma perversão. Nesses pontos de vistas, o Presidente Bush reza pela mesma cartilha do novo Papa. O que os separa é a pena de morte. Numa postura claramente sectarista afirmou, em entrevista a um jornal europeu, que o ingresso da Turquia na União Européia deveria ser vetado por que a Turquia é um país de população predomidantemente muçulmana, portanto incompatível com a “cultura cristã européia”. O Presidente George W. e o Papa Bento XVI apresentam-se como santos guerreiros unidos contra o dragão da maldade: a apatia religiosa reinante na Europa, os anseios dos católicos das Américas por reformas, o feminismo, bichas, divórcio. Qualquer semelhança com o Taliban já não é mera coincidência. Embora contemple um presente adverso, com missas melancolicamente esvaziadas e uma escasses crônica de seminaristas, o Colegiado de Cardeais elegeu um teólogo do passado, beirando os oitenta, cuja prioridade é proteger a igreja das influências da cultura contemporânea. É a igreja comanda por uma gerontocracia reacionária, que só faz se afasta de suas ovelhas. Nenhum desdém aos idosos, acumuladores de sabedoria nos trilhos do trem do tempo, mas sem renovação de liderança, as idéias apodrecem e morrem. Os números contam uma história de encolhimento e descontinuação pertinente ao que tento dizer: 40 anos atrás, 1 575 padres foram ordenados; no ano 2002, apenas 450. O número de seminários caiu de 50 000, em 1965, para 4 700, em 2002. A Praça de São Pedro fervilha com o entusiasmo e a emoção dos fieis católicos, e cria a ilusão ótica que a igreja está no pique de sua popularidade. A participação da Igreja Católica na campanha para eleger George Bush é um vale-tudo espiritual em que os fins justificam as alianças, mesmo um pacto com um império arrogante comandado por um belicista de Q.I. baixo. O Presidente Bush pode interromper suas férias para salvar Terry Schiavo, mas é pouco provável que ajude a salvar a igreja de sua letargia atual. A juventude européia simplesmente não tem estômago para as motivações do Presidente Americano, menos ainda a América Latina. Parece-me que o desafio equivocado do novo Papa na metade da primeira década do novo milênio é se interpor entre homens que se beijam, calar a música do U2, intrometer-se em úteros alheios, enquanto as verdades manifestas com todo zelo e ênfase pelo Filho de Deus, justiça social, tolerância, amor ao próximo, perdão, diluem-se na histeria da multidão ante o anúncio solene, a fumaça branca, os sinos produzindo o eco de um passado sombrio, dito em uma língua morta: “habemus papum”, "habemus papum".
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